Água, bem viver e cidadania nas cidades
Dia 22 de março, Dia Mundial da Água, como nós cidadão podemos agir para cuidar melhor de nossas fontes de água?
Por Vitor Taveira*

A relação entre água e cidades é inevitável. Os grandes assentamentos humanos se construíram historicamente levando em conta a disponibilidade de água para prover o abastecimento para consumo desse líquido fundamental para a vida humana.
Do Antigo Egito nas bordas e delta do Rio Nilo ou da Mesopotâmia entre os Rios Tigres e Eufrates à Londres do Rio Tâmisa, à Paris do Sena, só para ficar em exemplos bem emblemáticos da história antiga e moderna.
Mas olhando bem, parece que as cidades e metrópoles foram construídas sobre a natureza, contra a natureza – ou apesar dela. E isso é visível na forma em como tratamos a água.
São Paulo hoje pode servir como exemplo emblemático de duas questões: como uma cidade pode ser construída com tanto desprezo por seus cursos de água e, por outro lado, como a ação cidadã pode ajudar a impulsionar outra visão sobre o valor que damos à este líquido tão essencial para a vida.
Rios cobertos, várzeas tomadas
A crise hídrica em São Paulo evidenciou ainda mais a problemática da água e as contradições de uma cidade repleta de fontes de água, mas dependente de um grande sistema exterior, sofrendo com a escassez da mesma.
A exposição Rios Des.Cobertos, realizada pela iniciativa Rios e Ruas, mostra por meio de maquete e tecnologia eletrônica a abundância de água na maior metrópole brasileira. Mas por quê não vemos toda essa água ao caminhar pela cidade? O “progresso” poluiu e escondeu os rios.

Alguns pequenos cursos d’água certamente foram extintos de forma despreocupada pelo modelo de desenvolvimento e ocupação das cidades, porém a grande maioria segue correndo de forma subterrânea: foram canalizados, retificados e tapados. Muitos viraram esgoto, mas seguem sendo alimentados por água limpa.
A água segue seu fluxo desde nascentes, mas agora domada pelo que o ser humano considerou melhor ou mais prático pensando apenas em seu bem estar.
Aqui se faz, aqui se paga. As enchentes são um grande problema em várias cidades e sua explicação reside aí nesse mesmo processo: são frutos das cheias que causam transbordamento de rios canalizados ou que tiveram suas várzeas tomadas.
Basta observar e conhecer a natureza para notar que os rios alteram seus fluxos ao longo do tempo, que nas cheias transbordam e se expandem, para depois voltar a um curso mais reduzido. Ao ocupar as várzeas, que eram justamente os espaços para onde a água expandia nas cheias, parece óbvio que na época de chuvas algo vai acontecer. A várzea que tomamos, o rio cobra de volta. E nossas ruas alagarão, com todo o transtorno físico, mental e material que as enchentes podem causar.
Na capital paulista o que restou de rios visíveis foram os maiores, os vergonhosamente poluídos rios Pinheiros e Tietê, que antes tinham curvas sinuosas e hoje se converteram em grandes canais de concreto retificados, domados para seguirem ao lado do curso de avenidas, onde exalam sua podridão. O Estado gastou milhões e não recuperou praticamente nada.
Ressalto que não quero aqui negar que numa região de assentamento humano seja necessário realizar obras de infraestrutura e adequação. Ainda mais quando a ocupação acontece de forma massiva e desordenada. Mas cabe observar que em muitos aspectos a racionalidade que opera na mente de políticos e engenheiros é antropocêntrica, ou seja, considera o homem como ator principal do mundo, como ser dominador na natureza, quando na verdade somos parte de um grande sistema de vida que possui suas formas de regulação e manutenção do equilíbrio. Só essa mentalidade pode explicar tamanho descaso com o valor das águas e dos rios, chegando a esse nível dramático.
O Bem Viver, como uma perspectiva trazida desde os povos originários de Nossa América (Abya Yala), propõe um “giro biocêntrico” (ou ecocêntrico), superando essa forma de pensar o ser humano como centro da vida no planeta. Ou seja, que passemos a entender, como já entendem as populações tradicionais que dependem da manutenção desses recursos, que é possível conviver harmonicamente com o meio natural e é fundamental utilizar os recursos que a natureza gentilmente nos oferece de uma maneira que seus ciclos de reprodução sejam respeitados, para que as gerações futuras possam desfrutar deles. Como aquele provérbio que diz que “não herdamos o mundo de nossos ancestrais, nós o pegamos emprestado de nossos filhos”.
Mais curioso é que nas cidades da racionalidade antopocêntrica ao invés de aproveitar os recursos de água abundantes, se utiliza de sistemas externos ou periféricos, como as represas no caso de São Paulo. A crise do Sistema Cantareira escancarou um paradoxo: falta água numa cidade cheia de rios e com chuva constante. Pode, Arnaldo?
Dessa capacidade de externalizar os recursos é que se permite destruir o que se tem. Daí vem aquela impressão, meio de brincadeira mas com fundamento, de que parece que para pessoas da cidade as frutas nascem no supermercado e a água se origina da torneira.
Água e cidadania
Pensar políticas públicas para o Bem Viver, implica avançar para a desmercantilização da sociedade, considerar a natureza e seus ciclos como fundamentais e a ampliação da ação comunitária e a participação cidadã. Nem só de governos se faz a política. Nem só de políticos profissionais se faz a política. É aí que a São Paulo “babilônica” mostra sua face doce, de esperanza, de raiz, apesar do prefeito Nutella.
A ação da cidadania tem permitido um outro olhar sobre os cursos naturais existentes. Já mencionamos a iniciativa Rios e Ruas, criada por um arquiteto e um educador, que aponta como objetivo “reconhecer a natureza de rios soterrados por ruas e construções contribuindo assim para despertar uma compreensão afetiva sobre o uso do espaço urbano”. Além da exposição multimídia, realiza há anos oficinas teórico-práticas com escolas e outros grupos e expedições desde nascentes até a foz de cursos d’água da cidade. 
Ter nossos rios des-cobertos, com sugere o nome da exposição, não é uma utopia distante, pois sim foi realizado em outros países. Gente, eles continuam vivos! Sim, sim, os rios estão vivos e fluindo debaixo das avenidas, sob nossos pés! Por quê não trazê-los de volta à superfície e melhorar nossa paisagem? É o caso do Rio Cheonggyecheon, em Seul, Coréia do Sul, ou o Rio Saw Mill, em Nova York, EUA.
O Cidade Azul é outro projeto que visa a visibilizar os cursos de água existentes na cidade: "Por séculos as cidades têm tratado seus rios e lagos como canais de esgoto e o resultado é que não podemos desfrutar de sua presença e nem usufruir de sua água", alertam. Criaram um plataforma que permite aos cidadãos localizar os rios encobertos e em alguns deles conhecer a história desses rios por meio de audio-guias.
Um ícone da luta pela água em São Paulo é a Praça da Nascente, assim renomeada pela vizinhança da Pompeia, que é fruto da iniciativa de vizinhos do coletivo Ocupe e Abrace para resgatar as fontes de água de uma praça que se encontrava abandonada e agora virou um ponto de encontro e eventos no bairro. Cuidando das nascentes que ali brotam, foi possível fazer um pequeno lago e até improvisar uma cascata para amenizar o calor de verão em meio ao asfalto.
Mas nem tudo são flores. Muito perto dali, a construção de um edifício com 22 andares e 3 subsolos de garagem nos entornos da praça ameaça destruir nascentes, prejudicando a água e o solo da praça e colocando em risco todo ecossistema que abriga e protege a nascente, incluindo a vegetação e fauna. Por isso, a iniciativa Minha Sampa está coletando assinaturas contra o projeto e pressionando o poder público para barrá-lo (assine aqui!).
É justamente nessa região que estão nascentes que vão dar origem ao Córrego Água Preta, que desce canalizado até desembocar no Tietê. Ali perto, as placas em avenidas dizem: ÁREA SUJEITA A ALAGAMENTO. Elementar, meu caro Watson! É justamente a área da várzea do grande rio paulistano.
Nesse caminho do Água Preta, graças a uma incrível intervenção, é possível seguir o curso do rio apenas descendo as ladeiras e observando os muros marcados em tintas que dizem: “AQUI PASSA O ÁGUA PRETA”. Num pequeno beco, justamente sobre o córrego, várias intervenções artísticas, um poço criado para vê-lo passar, grafites coloridos, orelhas desenhadas que insinuam a colocar atenção para ouvir o rio descer, bancos, e uma “geladeroteca” com livros para serem trocados.
É nesse mesmo trajeto que desfile o Bloco do Água Preta. É isso mesmo, um bloco de carnaval que percorre o percurso do córrego, desembocando num mar de alegria, criatividade e intervenções artísticas para conscientizar sobre a água.
A Associação Águas Claras do Rio Pinheiros, além de realizar mobilização e pressão popular para revitalizar o rio, também utiliza a arte e intervenções urbanas para chamar a atenção da população, como estátuas de animais que habitam a região do rio ou a coloridas e atrativas sinalizações da desembocadura de afluentes no Pinheiros, que hoje são tristes valas.
Existe amor em SP. E existe água em SP. Adriano Sampaio, também integrante do Ocupe e Abrace, passou a realizar expedições pela cidade de São Paulo buscando chamar a atenção por meio de registros em fotos e vídeos de rios e nascentes esquecidos na cidade que precisam ser recuperados e protegidos. Daí o nome do projeto: Existe Água em SP. Não só lá, provavelmente em quase todas de nossas cidades, é só pesquisar, buscar, perguntar aos mais velhos, consultar os arquivos.
Eles estão ali, seguem fluindo. Mas foram esconderam, tirados de nossas paisagens, vidas e convívio. Vamos redescobrir e desencobrir nossos rios e nascentes. Despoluí-los. Voltar a viver com eles.
O que a experiência nos mostra é que é preciso cobrar do poder público políticas com outro enfoque, pensando no Bem Viver e na vida dos ecossistemas como um todo. E um compromisso de justiça ecológica, de resgatar e reverter a destruição já feita, recuperar espaços naturais para a cidadania, o bem estar, o convívio com o meio natural. Mas também não esquecer que podemos nos juntar também para além do Estado, na ação direta, com amor, cultura, ecologia, pensamento crítico e firmeza para enfrentar os interesses econômicos que vão contra a natureza.
Cuidar da água é cuidar da Terra, e cuidar das pessoas. A Mãe Natureza não precisa dos seres humanos, mas nós precisamos dela.
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*Vitor Taveira é jornalista, mestre em Estudos e integrante do Soy Loco Por Ti.
Comentários
Marly Cuesta
24 de Março de 2017
O Projeto Cidade Azul é bárbaro.Os outros,também!
Parabéns,Vitor, muito bom!